Caio Fernando Abreu
Entrevista conduzida por Paulo Mohyloski
Nos finais dos anos oitenta, fiz esta entrevista com o escritor Caio Fernando Abreu. Não era todo dia que tínhamos a oportunidade de ficarmos diante de um escritor que era um ícone de toda uma geração. Juntamente com Marcelo Rubens Paiva, Caio agitou o panorama literário com seu livro de contos “Morangos Mofados” de 1982. Naquela tarde, Caio me recebeu no seu apartamento na região dos Jardins. Estranhei que estivesse vestindo um roupão de banho. Ainda hoje, acho que esta imagem faz parte de um sonho. Eu ainda me questiono se vi mesmo Caio Fernando Abreu de roupão de banho. Mas enfim, sentamos no sofá e ele começou a responder minhas perguntas de uma maneira calma e pausada.
A voz de Caio era grave e profunda. Ele demorava em responder as perguntas. Tive a impressão que a entrevista duraria horas. Outra impressão que ficou foi de uma pessoa tensa, quase deprimida. Ele pouco sorriu durante toda a entrevista e não parou de fumar. Por mais que eu me esforçasse para tornar o ambiente mais relaxado, havia um estranhamento no ar. Sensação que nunca mais senti com nenhum outro entrevistado.
Quando fomos fazer as fotos, encontrei Caio no jornal o Estado de São Paulo, onde ele trabalhava como copidesque. Ele estava menos tenso e mais sorridente. Fomos para a cobertura do prédio, onde ventava muito. Caio ajeitava os poucos cabelos com dificuldade. Mesmo assim fumou um cigarro, brincou com a fotógrafa fazendo caretas e estava mais sorridente do que nunca.
Caio morreu em 1996. Da mesma maneira que aconteceu com Raul Seixas, depois da sua morte, a cada dia aumenta a sua popularidade, principalmente entre as gerações mais jovens. A entrevista que se segue é uma das poucas e raras que Caio Fernando Abreu concedeu na sua (breve) carreira literária.
- Qual foi a sua formação literária?
Comecei a ler muito cedo e lia absolutamente tudo. Com treze anos, descobri Lawrence e a literatura inglesa, minha grande paixão. Daí, fui indo por Joyce e Virgínia Woolf. Com 19 anos, eu tinha lido muito a vanguarda literária. Eu queria romper. Sempre gostei de cinema. Tentei, através da palavra, trabalhar uma linguagem cinematográfica.
- Você considera a sua literatura como sendo de vanguarda?
Não sei mais o que quer dizer vanguarda. Um conceito que se dispersou. Não tenho mais a preocupação de romper com nada. Tenho a preocupação de ser o mais verdadeiro e o mais claro possível. Tenho a preocupação com a beleza do texto. Como gosto muito de música, trabalho os meus textos em voz alta. E no livro que estou escrevendo há três anos, trabalho com a técnica minimalista de repetição, de coisa avançando lentamente, como um pingo d’água batendo na pedra.
- A literatura tende a desaparecer?
Numa época, eu lia muito antipsiquiatria. Eu me lembro de uma frase, que não sei se é do Laing ou do Cooper, que dizia: “O pior já aconteceu.” Pode parar de esperar pelo mais horrível, pelo mais grave, porque já aconteceu. A gente está se movendo no meio de escombros psicológicos. Ele dizia isto em relação à psicologia humana. Em literatura a explosão nuclear já aconteceu com “Ulisses” de James Joyce e com “Waves” de Virginia Woolf. E apesar disto, continua existindo.
- Paul Valéry dizia que o primeiro verso de um poema era dito pelos deuses e que o resto era mão de obra. Você concorda com isso?
Concordo plenamente. Eu crio muito em cima de frases, que eu não sei de onde vem, que chama de “frases-irmãs”. Esta frase não está ligada aparentemente a nada. Sou muito místico e romântico. Acredito que tenha ondas no seu cérebro que contactam com coisas misteriosas.
- Você entra em transe quando escreve?
Eu fico muito esquisito quando escrevo. Fico realmente numa outra faixa vibratória. Acontecem coisas muito loucas. Fico com taquicardia, tenho insônia e meu ritmo muda completamente. Eu me lembro que quando estava escrevendo a novela “Dodecaedro”, chegou um momento que bloqueou o texto. Eu não conseguia achar a saída. Eu estava escrevendo sobre uma personagem que seria o arquétipo do signo de Sagitário. Eu tentava e não vinha nada. Na época, eu tinha uma estante bem na minha frente com meus livros de poesia. Peguei um ao acaso e abri. Era um poema do Garcia Lorca chamado “Poema de La Saeta”, que fala sobre a constelação de sagitário. Incorporei este poema no texto e consegui a seqüência final da novela.
- A situação que você descreveu no processo de criação da novela “Dodecaedro”, de não estar encontrando uma saída para o prosseguimento do enredo, é a mesma situação que os personagens viviam, presos numa casa, cercada por cães raivosos. Acontece de você se transformar naquilo que escreve?
Acontece. Às vezes, é muito grave. Morangos Mofados, por exemplo, eu acho um livro pesado, amargo, depressivo, angustiado. E me aconteceu de receber personagens de contos que já tinha escrito. Tenho um conto chamado Sobreviventes que é um monólogo de uma moça que está bebendo muito. Eu recebia os Sobreviventes de vez em quando e era muito negativo.
A sua literatura é autobiográfica?
Não. Esta questão não existe, porque o único ponto de vista que você conhece sobre o mundo é seu próprio. São seus olhos que vêem, seu nariz que cheira, suas mãos que tocam. A experiência pessoal é indissociável do texto. Érico Veríssimo dizia que a cabeça do escritor é como o laboratório do doutor Frankenstein: um braço é de uma pessoa, a cabeça é de outra, formando um personagem que é a síntese de muita gente.
Você trabalha muito com a linguagem poética. Como você consegue encontrar poesia numa cidade como São Paulo?
A poesia está solta por aí. É como o filme “Sid e Nancy” que é horrivelmente poético. É a estética urbana do lixo. Tem uma cena muito bonita, que é um beijo dos dois no meio da rua e começa a cair uma chuva de lixo em câmera lenta sobre eles. Isto é medonho, mas é também muito bonito. Numa cidade como São Paulo, o belo está muito misturado com o horrível. O medonho e o maravilhoso vêm interligados.
- O sofrimento e o suicídio estão ligados à obra literária?
Não sei. Eu me lembro de Clarice Lispector que dizia: “As grandes sensibilidades não passam impunes”. Quanto mais você percebe o mundo, quando você capta o que se passa com outras pessoas e na sociedade, mais você fica vulnerável e sofre. Ultimamente, eu ando muito feliz. Eu tenho me debatido com esta idéia de que para criar é preciso sofrer. Acho que você pode manter a razão sobre sua criação e descobrir formas de encontrar de acordo com a sua realidade objetiva, sem que ela te fira tanto.
- Você nunca pensou em suicídio?
Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.
Você trouxe para a literatura um tipo de conteúdo até então inédito, que trata de drogas e sexo. Quais foram as suas influências para este tipo de conteúdo?
De minha própria vida. Sempre fui muito atrevido e curioso. Fui me metendo nas barras mais pesadas que se possa imaginar até acabar me marginalizando na Europa. Sou a minha própria personagem. A tua vida é um romance que você está escrevendo ou um filme que você está dirigindo. Nada é muito sério. Tudo é artifício. Há momentos em que você pode ser bandido, mocinho, anjo ou burguês. Eu sempre tive uma grande atração pela marginalidade ou pela literatura feita por marginais. Sejam marginais eróticos, como Genet ou marginais psicológicos, como Artaud. Ou a marginalidade espiritual de Virginia Woolf, que sempre me encantou muito.
Você conseguiu fazer a união entre vida e literatura?
Há dois tipos de escritores. Um seria, por exemplo, o Borges que ficou trancado a vida inteira no escritório e morava com a mãe até a velhice. O outro tipo seria como Jack Kerouac, que vai para a rua, para a sarjeta, para a vida. Qualquer um dos tipos é maravilhoso se o trabalho dele for bom. Eu me sinto mais próximo de Kerouac. Tenho muita vontade de viver. Tenho o espírito muito aventureiro.
Você se utiliza muito do recurso da citação, seja no começou ou no meio do texto. Esta é uma forma de dialogar com outros escritores?
De certa forma, sim. Há pequenas homenagens no que escrevo. Mas vivendo em 1986, em cima de milhares de anos de História, onde tudo já foi dito e feito, aquilo que você escreve vai repetir o que já foi dito. A Grécia mitológica convive com os computadores. Há um excesso de cultura e de informação e isso transparece no meu texto.
Você consegue ir além da palavra ou ela é um fardo que você carrega?
Às vezes, a palavra se torna uma escravidão. Com a palavra se supõe que você domestica a realidade. Se você estiver envolvido numa relação amorosa complicada e chamá-la de neurótica, você terá a impressão de que está compreendendo a relação. Mas o neurótico pode estar só na palavra. As emoções explodem além das palavras.
Você tem algum nome para o tipo de trabalho que você faz?
Numa época, eu chamava de literatura sensorial. Porque eu queria impregnar o texto de cheiros, cores, formas. Que não é nada novo. Rimbaud queria isso também. Depois eu pensava que escrevia uma ecologia das emoções, que foi numa época que meu trabalho era muito psicológico.
Na época que você morou no bairro de Moema, perto do parque do Ibirapuera, você escreveu alguma coisa?
Eu escrevi alguns contos. Eu morava numa casinha tão boa, tinha uma roseira tão bonita. Foi onde comecei a trabalhar neste livro que estou escrevendo há três anos. Foi uma época muito boa. Eu tinha uma bicicleta e passeava muito pelo Ibirapuera. Era uma delícia. E finalmente este último livro virá impregnado do ar de Moema.
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