Essa questão como professores ou futuros docentes nos interessa por que lidamos com a linguagem e com o livro didático.
Como se diz aqui no Rio Grande do Sul: "Deu!" Essa polêmica me leva a dizer algumas coisas que devem causar mais polêmica (rs).
Infelizmente, a culpa é nossa, estudiosos da linguagem, que não temos uma presença pública para explicar ao público que nenhuma comunidade de falantes segue estritamente, em especial na fala, as ditas regras ideais da chamada norma padrão. Aliás, nem os jornalistas e outros que se mostraram horrorizados com essa constatação científica, comprovada por uma multiplicidade de estudos. E nos próprios textos deles se mostra isso. Há confusões conceituais e vários enganos. Alguns elementos para pensar:
1. A modalidade original da língua é evidentemente a falada. O aluno chega na escola falando a língua falada coloquial, já que ainda não aprendeu a formal e menos ainda a escrita, que é outra modalidade. A formal será sempre menos usada, porque há menos situações formais. P.ex. na hora da entrevista, o chefe exige a formal, mas no dia a dia ele mesmo não a usa...
2. A língua formal é falada em situações formais, logicamente. Há um espectro de formalidade e um espectro de coloquialidade.
3. A língua falada tem sua própria gramática, que é menos tensa, ou rígida, do que a escrita. A língua escrita é uma convenção, não uma reprodução da fala no escrito. Logo, não representa a língua falada, e é por isso que se tem
dificuldades para ensinar seu uso. O texto escrito pode ser, como o falado, mais formal e menos formal; mais coloquial e menos coloquial.
4. Atitude linguística não tem nada a ver com valor intríseco da variedade linguistica que se usa. A elite estabelece, por razões
burocráticas e de poder, qual é a variedade inacessível dela, e faz de
tudo para que não se aprenda, e o faz enrijecendo as regras e criando uma multiplicidade delas.
5. Dar acesso a variedades de prestígio, ou seja, mais próximas do ideal inacessível que é a normal padrão, a da elite, é algo vital, mas não implica nem deve implicar menosprezar a língua falada pelos alunos. Deve-se partir desta, na verdade, e é por não partir desta que a escola comete uma violência contra o aluno, porque, ao recusar sua fala, recusa sua identidade, humilhando-o. Contra isso se insurge há 30 anos a sociolinguística, e finalmente um autor teve a coragem dedizer isso com todas as letras.
6. A língua em si é abstrata. O que há são variedades de muitos tipos convivendo ao mesmo tempo. Os letrados usam certo número de variedades cultas, mas estas não se confundem com a norma padrão necessariamente abstrata. São raras as pessoas que usam essa norma padrão o tempo todo em todas as circunstâncias.
7. A rigor, todos falam e escrevem "errado", porque sempre há uma regrinha não cumprida. Logo, o que está errado é a rigidez da gramática.
8. Há hoje gramáticas de uso e dicionários de uso. Estes mostram como se fala e escreve, e não como se deve(ria) falar e escrever.
9. E me respondam: por que, quando eu não uso estritamente a norma em uma aula de pós-graduação ou numa palestra, ninguém me discrimina? Será por ser eu o professor/palestrante? E por que discriminam o candidato a emprego? Não vemos aí que é a posição social que determina a atitude sobre o desempenho linguístico, e não o contrário?
10. Insistir que só a variedade formal de maior prestígio é válida produz preconceito e ajuda os detentores do poder a mantê-lo. A escola precisa parar de ser reprodutora de preconceitos. Dar acesso a variedades cultas escritas é vital para criar cidadania, mas discriminar quem não segue certos parâmetros é anticidadania, é uma das causas da evasão, da manutenção da pobreza. Porque o aluno não-pobre tem onde praticá-la, mas a maioria só a usa na sala de aula. E se sente humilhada por causa da rejeição e da rigidez.
11. A escola no Brasil foi feita para as elites e subelites que podem praticar as variedades cultas. Quando teve de aceitar a não-elite, ficou perdida.
12. A ironia é que, com tantas discussões há tantas décadas, os falantes continuam a usar a língua como querem. E ela, impávido colosso, continua na boa, na dela, sem estresse.
13. Na real, posso usar "na real" porque sou uma das "autoridades" em termos de linguagem e dirão que eu me dei a liberdade de usar. Mas meu aluno não pode. Por quê? Pelo mesmo motivo, ao contrário: ele não é uma autoridade! Meu uso é "licença poética". O dele é "incapacidade". Machado de Assis usava "figuras de linguagem"; meu aluno que usa um recurso igual comete "vícios de linguagem".
14. Conclusão parcial: "o lingüístico não é estritamente lingüístico, sequer na lingüística tradicional ou na gramática normativa (em que contextos presumidos costumam ser .contrabandeados para as palavras, frases etc. pretensamente “neutras” – Bakhtin). Essa ênfase advém da junção de duas concepções errôneas disseminadas, a primeira, a que já me referi, é a idéia do ensino como transmissão de conteúdos fixados,
idéia positivista que reduz os seres humanos a máquinas de transmissão e registro de dados e desdenha o processo de objetivação e apropriação do mundo natural como mundo humano, mundo social e histórica, sendo a segunda a idéia da ciência como instância criadora de generalizações a todo custo, idéia teoreticista que não vê o concreto, o aqui e agora,a singularidade, perdendo-se na criação de objetos que, de tão gerais,
chegam a ser inindentificáveis. Nos dois casos, o resultado é o
enrijecimento de conceitos e as sobreposições conceituais."
Adail Sobral
Disponível em: http://adailsobralinterativo.blogspot.com/2011/05/polemica-do-livro-que-ensina-errado.html?showComment=1305762801444#c3692061914296265943
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